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Sou trans e garota de programa, e daí?

Publicada dia 14/01/2021 às 11:22:58

Bruno Henrique e Thaís Balielo

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Thaís Balielo


Com raras oportunidades de empregos, transexuais acabam tendo que recorrer à prostituição para sobrevier. Uma estimativa feita pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), com base em dados colhidos nas diversas regionais da entidade, aponta que 90% das pessoas trans recorrem à prostituição ao menos em algum momento da vida.

É a história de Hianka Henderson Silva, 27. Ela estudou até o segundo ano do Ensino Médio e desistiu da escola por sofrer muito preconceito. “Entrei nessa vida de GP por falta de oportunidade. Se tivessem me aceito para trabalhar antes, quando comecei a transição, não teria cogitado trabalhar em uma esquina. Mas acabou que fui e como conseguia ter uma independência financeira, acabei ficando”, diz.

Hianka conta que se assumiu trans aos 17 anos e seu refúgio é sua família que sempre aceitou sua condição. “Minhas melhores amigas são minha mãe e minha irmã”, afirma. Foi difícil lidar com as pessoas no início. “Nem eu mesma sabia ao certo o que era ser uma pessoa trans. Mas me dei a chance de tentar e fui me descobrindo, pesquisando muito sobre até me entender”, conta.

Recentemente ela publicou um desabafo no grupo Câmara de Santa Cruz no Facebook, pedindo respeito e lamentando nem poder andar no comércio com sua mãe sem ser ofendida. “Desde que resolvi me assumir já vinha sofrendo com piadas de mau gosto e chacota. No início eu retrucava e xingava de volta, depois além de ser xingada começaram a não gostar de ser xingados de volta e até ameaçavam a gente. Então resolvi ignorar e fingir que estava tudo bem. Porém, 10 anos ouvindo as mesmas piadas, então sendo humilhada quando estava junto da minha mãe que tem 60 anos, cansei e resolvi publicar aquele desabafo”, diz.

Questionada se mexem muito quando está na rua como garota de programa, ela afirma que é todo dia. “Porém, acho que se iguala uma ida ao centro comprar maquiagem ou estar ali na esquina à noite. A falta de respeito é igual. O preconceito é mais por ser trans, pois quando estou no comércio as pessoas não sabem que sou garota de programa”, argumenta.

Sobre ter um emprego formal, ela disse que chegou a desistir. “Sempre fui muito estudiosa e comunicativa, porém sinto que o que atrapalhou e ainda atrapalha, é o fato de eu ser trans e o trabalho como garota de programa em uma cidade pequena onde todos se conhecem. Isso gera medo dos empregadores em me aceitarem na empresa e acabarem me reconhecendo do local onde eu faço programa”, acredita.

Hianka pretende fazer uma prova para ter o diploma de conclusão do ensino médio. Já fez cursos de informática e tem o projeto de um dia abrir uma loja de manutenção de celular. “As pessoas precisam se informar mais, não ter vergonha de perguntar ou de pesquisar, precisam aprender a dar chance. Conheço muita gente capacitada que só agregaria a qualquer empresa que contratasse, mas por ser trans ficam de fora. Os dois lados perdem”, afirma.

Perigos

Sobre o risco de trabalhar na rua ela conta que já roubaram seu dinheiro e a deixaram na pista, o que já ocorreu com outras amigas também. Elas ficam em três no ponto e procuram ficar próximas a uma casa que tem câmera para inibir. Elas anotam as placas dos carros que as pegam também. “Mas o medo é constante. Agora temos ido bem menos para rua, pois tem um site de anúncio de programa aqui na cidade, então posso marcar e atender em casa”, conta.

Sobre relacionamento, ela conta que namorou uma vez, mas não procura e nem tem vontade de namorar. “Com o que trabalho não dá para associar. Sem contar que se um já dá trabalho, imagina eu que saio com vários. Chega uma hora que não aguento mais ver homem na minha frente. Estou traumatizada com homens depois de tudo que vivi nesses 10 anos, aprendi que homem não vale a pena para se relacionar, ao menos não no nosso caso”, afirma.

Hianka também faz uma revelação de que a cidade está abarrotada de falsos militantes a favor da família tradicional brasileira. Além disso, eles pagam para serem passivos. “Inclusive é o que dá mais dinheiro para gente. Eles saem com a gente por termos o que as meninas não têm, caso contrário sairiam com as mulheres que fazem programa”, argumenta.

Transexual, Rayssa dos Santos, 24, também deixou os estudos por medo do preconceito na escola. “Sempre me senti uma criança diferente entre as outras. Aos 15 anos me assumi para minha mãe, somente aos 17 comecei a transição e passei a me vestir e se comportar como mulher trans”, conta.

Rayssa teve pânico na escola, pois já sofria preconceito pelo seu jeito diferente e iria começar sua transição quando desistiu dos estudos. “Estava na escola no primeiro dia de aula, quando a professora fechou a porta comecei a suar frio, barriga doer, então pedi para ir ao banheiro, levantei e nunca mais voltei”, relata.

Sobre a falta de oportunidade de emprego, Rayssa acredita que realmente seja muito difícil conseguir algo fora das ruas, mas admitiu que nunca chegou a procurar. “Não vou me vitimizar, falar que falta oportunidade, pois nunca busquei trabalho sendo trans. Acabei me acomodando ali. Para mim sempre estava bom, mais hoje depois de sete anos já me preocupo quanto a isso. Estou pensando em terminar os estudos e fazer cursos para poder entrar no mercado de trabalho futuramente”, diz.

Rayssa já trabalhou com faxina e fez curso de cabeleireira. “Faço cabelo quando aparece algum, mais minha vontade nunca foi essa. Na verdade, sempre gostei de matemática que era minha matéria favorita. Tive muito apoio na escola quando menino. Lembro que fui presidente do primeiro grêmio estudantil e fiz uma apresentação nas salas. Mais aí comecei a minha transição e abandonei tudo com medo das piadas”, revela.

Ela conta que já foi roubada e ameaçada e que sofre muito preconceito quando está na rua. “É preciso mais empatia e se colocar no lugar do outro para esse preconceito diminuir”, afirma. Ela também revela que de cada 10 que faz programa, 9 são do tipo machões quando estão com os amigos, passam mexendo, humilhando, mas depois voltam querendo programa”, diz.

Sobre relacionamento, Rayssa morou junto com um namorado por 10 meses. Ela o conheceu nos programas e começaram a namorar. “Ele foi expulso de casa e acabou indo morar comigo. Ele sofreu muito preconceito por estar comigo. Fiquei este período sem fazer programa e virei dona de casa. Quando nos separamos voltei a fazer programa”, conta.